De acordo com dados do Infopen, o Brasil enfrenta as graves conseqüências da política de encarceramento em massa. Desde 2005 a taxa de encarceramento brasileira aumentou 35%, já tendo chegado a mais de meio milhão de pessoas presas. Unidades de privação de liberdade superlotadas geram condições para que a tortura e os maus-tratos aconteçam cotidianamente.
Vários mecanismos de direitos humanos da ONU têm afirmado que no Brasil a tortura é “generalizada e sistemática”1. O governo brasileiro admite a existência da tortura e sua gravidade2. Admite também sua própria falha na produção de dados estatísticos sistematizados sobre a tortura nas unidades de privação de liberdade que permitam dimensionar a prática e adotar medidas eficazes de enfrentamento3.
A persistência da tortura no Brasil é uma consequência direta da ausência de políticas efetivas de prevenção e principalmente da falta de responsabilização dos perpetradores.
A visita do SPT e suas recomendações
Justiça Global e Conectas Direitos Humanos, em parceria com outras organizações brasileiras, têm colaborado com o SPT na preparação da visita com informações a respeito de casos de tortura e maus-tratos no sistema penitenciário e em outros locais de detenção, como as unidades do sistema socioeducativo. Em maio de 2011, as organizações se reuniram com os membros do SPT em Brasília e no Rio de Janeiro durante uma visita preparatória.
No seu relatório final, o SPT recomendará ao Estado brasileiro medidas de prevenção e combate à prática de tortura no país, além de melhorias nas condições de detenção. Justiça Global e Conectas ressaltam a importância de o SPT incluir em suas recomendações as seguintes medidas prioritárias:
Criação do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura, além da criação de mecanismos estaduais
Segundo o Protocolo Facultativo, o Brasil deveria ter criado o mecanismo nacional em 2008, um ano após a ratificação do documento4. Recentemente, a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, disse que a sua implementação é uma de suas prioridades e que enviará ainda neste ano o projeto de lei. O Protocolo faculta a criação de mecanismos estaduais, que no caso brasileiro já foram estabelecidos em três estados, Alagoas5, Paraíba6 e Rio de Janeiro7. A Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo está estudando um projeto de criação de um mecanismo estadual elaborado pela Defensoria Pública junto com organizações da sociedade civil.
Fortalecimento da Defensoria Pública, especialmente com a presença constante de defensores em locais de detenção
A presença de defensores nesses locais seria um meio importante de prevenção e combate à tortura e garantia de atendimento jurídico aos presos. Uma das causas da tortura no país é a não responsabilização dos acusados de cometer este tipo de crime. Um dos elementos que comprometem este processo é justamente as dificuldades que enfrentam as vítimas ao denunciar a tortura e na sua apuração. A presença da Defensoria Pública atuaria diretamente nesta fase, acionando as autoridades competentes nos casos de cometimento de crimes de tortura nas unidades prisionais.
Neste sentido, o estado de São Paulo enfrenta um problema particularmente sério, já que são apenas 35 defensores responsáveis pelo atendimento jurídico em todo o sistema prisional paulista que compreende mais de 170 mil presos(INFOPEN).
Independência dos órgãos responsáveis por realização de laudos médicos e periciais (Institutos e Departamentos Médicos-Legais) da estrutura institucional das polícias8
Sem uma pericia medica confiável, resulta impossível provar a tortura. Sendo estes órgãos vinculados à estrutura da própria polícia, a independência na apuração de crimes supostamente cometidos por policiais, como a tortura, fica comprometida9. O Relator da ONU contra a Tortura (no ano 2000) e o Comitê da ONU contra a Tortura (em 2009) recomendaram que os médicos sejam treinados para identificar lesões características da tortura e que os órgãos médicos sejam independentes, em particular de independentes de toda a estrutura policial.
Fim da revista vexatória dos familiares de presos
Para tal, as organizações recomendam a aprovação de uma lei federal que inclua: (i) proibição da revista íntima de visitantes e presos; (ii) proibição de revista manual e obrigatoriedade da revista com uso de equipamentos eletrônicos para visitantes; (iii) autorização da revista manual apenas em caso de fundada suspeita de que o visitante traga consigo elementos cuja entrada seja proibida e/ou exponha a risco a segurança do estabelecimento prisional; (iv) a fundada suspeita deverá ter caráter objetivo e ser registrada pela administração em livro próprio, assinado pelo revistado, testemunhas e pelo funcionário; (v) fornecimento ao visitante de declaração escrita sobre os motivos objetivos que justifiquem a revista manual, dando-lhe a opção de recusar a se submeter ao procedimento se desistir de realizar a visita
Dos 11 países já visitados pelo SPT, 5 deles tornaram as recomendações públicas. Esperamos que o Brasil siga esta prática de transparência.
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Notas
1 ONU, Comitê contra a Tortura. “Report on Brazil produced by the Committee under art. 20 of the Convention”, Documento CAT/C/39/2, parágrafo 178 (no original “torture and similar ill-treatment continues to be meted out on a widespread and systematic basis”).
2 No relatório nacional apresentado pelo Brasil durante o primeiro ciclo da Revisão Periódica Universal (RPU) do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em 2008, o governo reconheceu a prática da tortura e sua gravidade (parágrafo 51). Documento ONU, A/HRC/WG.6/1/BRA/1, 7 de março de 2008, disponível em http://www.ohchr.org/EN/HRBodies/UPR/PAGES/BRSession1.aspx.
3 “El Gobierno brasileño reconoce la gravedad de esta situación. El problema es difícil de abordar y el primer obstáculo es la falta de bases estadísticas en todo el país que permitan cuantificar los acontecimientos de una manera precisa” (Idem, parágrafo 52).
4 No relatório nacional apresentado na Revisão Periódica Universal, descrito acima (nota 1), o Brasil demonstrou preocupação com o tema e indicou que atuava para a implementação do Mecanismo Nacional (parágrafo 55, item 3.9), porém esta obrigação não foi cumprida até agora.
5 Lei nº 7.141/2009
6 Lei nº 9.413/2011
7 Lei nº 5.778/2010
8 O Relator contra Tortura da ONU, Nigel Rodley, quando visitou o Brasil em 2001, também recomendou que os institutos e departamentos médicos-legais estejam sob autoridade independente e não sob a autoridade da polícia. O relatório dessa visita se encontra na íntegra disponível em http://daccess-dds-ny.un.org/doc/UNDOC/GEN/G01/123/23/PDF/G0112323.pdf?OpenElement.
9 O Brasil reconheceu este problema no relatório nacional apresentado na Revisão Periódica Universal (parágrafo 56). Além disso, organizações da sociedade civil denunciaram esse problema ao CAT (parágrafo 51, p. 18 do relatório do CAT).
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