Em 1989, comecei um trabalho voluntário em presídios, que dura até
hoje. No Carandiru, naquela época, a moda era injetar cocaína na veia.
Os presos vinham pele e osso, com os olhos ictéricos e os braços
marcados pelas agulhas e os abscessos causados por elas.
Naquele ano, colhemos amostras de sangue dos 1.492 detentos
registrados no programa de visitas íntimas: 17,3% dos homens eram
HIV-positivos, e 60% estavam infectados pelo vírus da hepatite C.
A partir desses dados, começamos um trabalho de prevenção que
constava de palestras e vídeos educativos. Lembro que o diretor-geral
tentou me convencer da inutilidade da iniciativa:
– O senhor está sendo ingênuo. Quem injeta cocaína na veia é irrecuperável, não tem mais nada a perder.
Estava errado, o resultado foi surpreendente: em 1992, a cocaína
injetável foi varrida do mapa, fenômeno que se espalhou pelos outros
presídios e pelos becos da periferia de São Paulo. A moda do baque na
veia tinha chegado ao fim.
Não havia motivo para comemoração, no entanto: naquele ano, o crack
invadiu o Carandiru. Para entender o que se passou, é preciso conhecer
um pouco da farmacologia da cocaína.
Quando inalada sob a forma de pó, a cocaína é absorvida através da
mucosa nasal, penetra os vasos sanguíneos superficiais, cai na
circulação e atinge o cérebro. O processo é relativamente lento, a
euforia aumenta gradativamente, atinge o pico e diminui até desaparecer.
Injetada na veia, vai direto para o coração, depois para os pulmões, e
volta para o coração de onde será bombeada para o cérebro. O efeito é
muito mais rápido e passageiro. A sensação é de um baque de prazer – daí
o nome “baque na veia” – experiência muito mais intensa do que a obtida
por inalação.
Fumada na forma de crack, a droga chega ao cérebro mais depressa do
que ao ser injetada na veia, porque não perde tempo na circulação
venosa, cai direto no pulmão. Do cachimbo ao cérebro, leva seis a dez
segundos. O efeito é semelhante ao baque da injeção intravenosa, porém
ainda mais rápido e fugaz.
O crack substituiu o baque e se disseminou pela cadeia feito água
morro abaixo. Quando um preso negava ser usuário, eu partia do princípio
de que mentia. Devo ter cometido pouquíssimas injustiças.
Na segunda metade dos anos 1990, uma das facções que dominavam os
presídios se sobrepôs às demais. Seus líderes rapidamente perceberam que
os craqueiros criavam obstáculos para a ordem econômica que pretendiam
implantar. A solução foi proibir o crack. A lei é clara: fumou na
cadeia, apanha de pau; vendeu, morre.
Ao chegar, o egresso da cracolândia dorme dois ou três dias
consecutivos; só acorda para as refeições. Depois desse período, passa
alguns dias um pouco agitado, mas aprende a viver sem crack.
A cocaína não é tão aditiva como muitos pensam, se o usuário não
tiver acesso a ela, nem aos locais em que a consumia, nem entrar em
contato com companheiros sob o efeito dela, nada acontece. Ao contrário,
a simples visão da droga faz disparar o coração, provoca cólicas
intestinais, náuseas e desespero.
Quebrar essa sequência perversa de eventos neuroquímicos não é tão difícil: basta manter o usuário longe do crack.
Vale a pena chegar perto de uma cracolândia para entender como é
primária a ideia de que o craqueiro pode decidir em sã consciência o
melhor caminho para sua vida. Com o crack ao alcance da mão, ele é um
farrapo automatizado que não tem outro desejo senão o de conseguir a
próxima pedra para o cachimbo.
Veja a hipocrisia: não podemos interná-lo contra a vontade, mas
podemos mandá-lo para a cadeia assim que roubar o primeiro celular.
Não seria mais lógico construirmos clínicas pelo País inteiro com
pessoal treinado para lidar com os dependentes? Não sairia mais em conta
do que arcar com os custos materiais e sociais da epidemia?
É claro que não sou ingênuo a ponto de imaginar que, ao sair desses
centros de recuperação, o ex-usuário se transformaria em cidadão
exemplar. Mas, pelo menos haveria uma chance. Se continuasse na sarjeta,
que oportunidade teria?
E, se ao ter alta da clínica, recebesse acompanhamento ambulatorial,
apoio psicológico e oferta de um trabalho decente desde que se
mantivesse de cara limpa documentada por exames periódicos rigorosos,
não aumentaria a probabilidade de ficar curado?
Países como a Suíça que permitiam o uso livre de drogas em espaços
públicos, abandonaram a prática ao perceber que a mortalidade aumenta.
Nós convivemos com as cracolândias sem poder internar seus habitantes
para tratá-los, mas exigimos que a polícia os prenda quando se comportam
mal. Existe estratégia mais estúpida?
Na Penitenciária Feminina em que trabalho hoje, atendo muitas
ex-usuárias de crack. Quando lhes pergunto se são a favor da internação
compulsória dos dependentes da cracolândia, todas respondem que sim.
Nunca encontrei uma que sugerisse o contrário.
Fonte: Drauzio Varella
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